Sobre um dia desses, e um sentimento desses.
Era quinta, ou sexta, ou poderia ser até sábado. Eu não sei
muito bem mais que dia é. Já passava das 17 horas quando eu resolvi sair de
casa pra tentar deixar tudo aquilo que estava na minha cabeça na primeira lata
de lixo que eu visse pela rua. O dia estava nublado, e chuviscava um pouco
também. E como sempre, eu não tinha um guarda-chuvas. Vai que começa a chover,
fodeu.
Sai de casa e decidi que andaria sem rumo. Peguei o que
restava dos cigarros e uma caixa de fósforos, botei uma blusa, boné e coloquei
os fones de ouvido. Muitas coisas estavam na minha cabeça e nada estava na
minha cabeça ao mesmo tempo. Eu conseguia sentir todos os sentimentos do mundo,
desde amor, paz até ódio, medo, rancor, tudo ao mesmo tempo.
Caminhei por umas quatro quadras e a chuva apertou um pouco,
avistei um lugar aberto, era um boteco, entrei. Fui até o balcão, sentei e
esperei o dono do bar me atender.
- E aí mano, como cê tá?
Ao ouvir a voz, olhei estranhando a forma como o dono do bar
se dirigiu a mim.
- Rapaz, é tu mesmo? Como eu vim parar aqui no seu bar?
- respondi ao reconhecer o dono do bar e
meu amigo.
- Seus pés já sabem chegar aqui. Hahaha, mas e aí o que aconteceu?
- Como assim, o que aconteceu?
- Você aparece aqui só quando dá alguma merda, aliás, sua
cara diz que deu uma puta merda.
O dono do bar era meu amigo de infância, vivíamos juntos por
aí. Ele sempre me apoiou em grande parte das coisas que eu fazia, a outra parte
ele odiava de todo o coração, mas aceitava por que sabia que me fazia bem.
- Ah cara, você sabe como é a vida né?
- Já sei, “Azar no jogo, sorte no azar” como você sempre
disse?
Rimos.
- Exatamente, aliás, posso fumar aqui dentro?
- Pode, mano, só que, qualquer coisa, corre ali pra cozinha
e fala que tava lá.
- Então beleza.
Acendi um dos últimos cigarros que estavam na carteira, ele
pôs uma garrafa de cerveja em cima da mesa, abriu, pegou dois copos e os
encheu.
- Vou tomar uma com você enquanto conversamos.
- Aproveita então e traz mais uma carteira de Marlboro por
que a minha ta acabando.
Teríamos uma conversa longa, havia muito tempo que não nos
víamos e, era melhor se precaver.
Entre um gole e outro, nos lembrávamos dos tempos em que saiamos
juntos, passávamos a noite na rua, bêbados e sem saber como voltar pra casa. Até
ele lembrar que havia acontecido alguma merda, e com certeza ele ia querer
saber que merda era essa.
- Mas me diz ai, o que foi que aconteceu com você? Do nada
tu aparece aqui, e sempre que aparece aconteceu alguma coisa. Vai falando, eu
vou abrir mais uma cerveja pra nós. Você tá dirigindo? Se não eu paro com a
bebida já.
- Tô dirigindo não, trás mais uma cerveja e, aliás, você
ainda tem aquela garrafa de conhaque que a gente tomava aqui no bar?
- Caraaalho, eu ainda vendo aquele conhaque, quer tomar?
- Opa, deixa a garrafa aqui do lado já, por que eu vou te
contar a parada.
Ele veio com uma cara de desconfiança e pôs a garrafa do meu
lado, e mais um copo. Acendi um cigarro e enquanto puxava o primeiro trago,
toda a memória dos últimos dias me veio como uma bomba. Minha fisionomia mudou,
e o cara que sorria e estava alegre, começou a ficar mais fechado e mais
introspectivo. Tomei duas doses de conhaque. Engoli mais uns dois tragos e
olhei nos fundos dos olhos dele.
- Você está pronto?
- Fala, cara, eu to é preocupado com você!
- Vai enchendo esse copo ai com mais uma dose que me veio
tudo na cabeça de uma vez agora. Você se lembra daquela vez, que eu tinha uma
“namorada”, que ninguém dos nossos amigos, muito menos você conhecia, e que eu
sempre falava dela, dizia que sempre passeava com ela e que ela era minha alma
gêmea?
- Claro que eu lembro, metade do pessoal que andava com a
gente parou de falar com você por que te achou louco.
- Pois então, você lembra daquela vez, lá na praça de baixo,
em que eu te disse o que eu sentia por ela e que eu sabia que não poderia dar
certo, mas que eu sentia aquilo tudo.
- Lembro, mas, cê ta falando daquela sua “mina” que não
existia, né?
- Ela existia, na minha cabeça, mas ela existia. Odeio
quando você fala isso.
- Tá, tudo bem, ela existia, mas não pra nós. Pronto. Só
você viu ela, e eu imaginei, por que a cada 10 palavras que você falava, 12 era
sobre como ela era, sobre como ela falava com você e sobre como você reparava
na forma que ela segurava o cigarro enquanto soltava a fumaça do trago. Tá você
era apaixonado por uma moça que só existia pra você!
Respirei fundo, engoli mais uma dose de conhaque, acendi
outro cigarro.
- Pois então, você lembra como eu fiquei com aquele choque
de realidade, não é?
- E como não lembrar daquilo. Foi foda te ver daquele jeito,
mas eu tava lá, você lembra né?
- Lembro sim, claro que eu me lembro. Você é o único que eu
ainda vejo desde aquela época.
- Tá bom, mas fala ai, o que aconteceu? Ah, antes, vou
roubar um cigarro seu, por que não vou abrir um maço novo pra mim. Depois eu te
dou um fechado.
- Hahahaha, pega ai. Então, eu acho que você é a pessoa mais próxima dessa história toda, e
simplificando tudo o que aconteceu, eu só posso te dizer que aconteceu tudo de
novo.
- Calma, como assim? Você arrumou outra mina que não existe
pra nós?
- Não mano, eu conheci alguém. Alguém de verdade, alguém que
se interessava por como eu falava sobre astrofísica e sobre como as estrelas
morrem, sem nem saber que estrelas morriam. Eu senti tudo aquilo que eu tinha
sentido pela mina de antes, mas por essa agora.
- Tá, mas você deveria estar feliz então, não é? Eu nunca
entendi esses lances de espaço que você sempre falou.
Alguém se aproximou da porta do bar e deu um grito que
cortou o nosso assunto: “Ae chefia, trás mais duas fichas do bilhar pra nóis
ai, marca na conta do cara aqui.”
- Espera ai mano, você vai me contar essa história toda
ainda. Só deixa eu acertar as coisas pros caras ali do bilhar.
Enquanto ele saiu, eu vi alguém se aproximar do balcão, uma
moça, por volta dos 1.70 de altura, roupa preta, cabelos escuros e próximos ao
ombro, olhou pra mim, deu um sorriso e sentou na banqueta. Pensei em dizer pelo
menos boa noite, mas eu estava com todos os sentimentos do mundo grudados no
meu peito, e o medo de falar qualquer merda e não ser compreendido
corretamente, era maior. Foquei em olhar pro copo enquanto tragava o cigarro.
Minha cabeça começou a girar e muitas, muitas informações se passavam por ali.
Desde como tudo poderia ser nada, e como a minha existência é ínfima ao
universo, até como eu iria embora pra casa e aonde diabos é minha casa. Tudo
numa mesma fração de segundos. Eu já não conseguia ficar parado olhando
fixamente pro copo e tudo o que eu precisava era algo que eu não sabia exatamente
o que era, então, a moça ao lado olhou pra mim, perguntou se estava tudo bem,
acenei com a cabeça que sim, mas não emiti uma palavra. Ela sorriu, pôs a mão
no meu ombro de leve, se aproximou e disse bem baixinho.
- A nossa existência não é nada perto do tamanho do
universo, mas alguém, uma hora ou outra, vai sentir sua falta. A gente se vê
por aí.
E saiu caminhando calmamente. Ao olhar a moça saindo,
percebi que a conhecia e que tinha certeza de quem era. Cocei os olhos, tomei
mais umas duas doses de conhaque, acendi um cigarro na bituca do outro enquanto
algo tomava conta do meu corpo, algo como uma vontade de fazer alguma coisa mas
ao mesmo tempo não fazer nada e enquanto meu corpo travado na banqueta tentava
se mexer, eis que meu amigo volta.
- Foi mal, mano, esses caras são chatos pra porra. Mais diz
ai, o que tu tava dizendo mesmo?
- Mano, você viu quem acabou de sair daqui? Era ela, eu
tenho certeza que era ela.
- Ela quem?
- Ah mano, deixa pra lá. Vou resumir o que aconteceu, eu me
apaixonei pela mina, pelo fato de ela ter feito o que muitas outras não
fizeram, ainda mais com astrofísica. Mas enquanto eu pensava “eu preciso falar
pra ela”, alguma coisa me dizia “fica quieto, mano, vai dar ruim”, eu fiquei
nesse empasse todo e nesse looping vicioso do que fazer e...
Parei alguns minutos, pensei em tudo o que aconteceu,
formulei tudo o que eu iria dizer e enquanto meu amigo olhava pra mim com uma
cara de quem quer saber logo o final da história.
- ... eu fiz, falei e tentei demonstrar até demais. E ela
disse pra pararmos de nos ver, por que estava ficando ruim pra ela e que não
era exatamente aquilo.
- E quando ela te disse isso?
- Ontem, mais ou menos.
- E quanto tempo faz que você ta pensando nessa resposta
dela?
- Desde que ela me deu a resposta. Eu tenho pensado e
repensado no que fiz de errado e no que posso ter feito a cagada, mas você
sabe. A cagada tá em demonstrar algo.
- Mano, não é bem assim também.
- É, mano, é assim. Tu já tentou não demonstrar nada pra
ninguém? Só pra você mesmo? É muito mais fácil por que você não se decepciona.
Ou se decepciona, não sei. Como eu já vivo decepcionado comigo mesmo, então é
mais fácil.
- Cara, é a opção dela, tu respeita isso pelo menos não é?
- Claro que respeito, é por isso que me afastei e por isso
que fico com todos esses sentimentos dentro de mim, guardados e quase
explodindo minha caixa toráxica.
- Eu não sei o que te dizer, posso te oferecer mais umas
doses e mais cigarro.
- Por mim, está ótimo...
Peguei mais dois maços, uma garrafa de conhaque fechada.
Deixei uns trocos e pedi pra marcar o que faltasse, normalmente eu voltaria em
breve. Ele aceitou, pôs a mão no meu ombro e disse:
- Você sente demais, precisa aprender a controlar isso,
rapaz, isso ai vai te matar ainda.
- Eu também acho... eu também acho.
Coloquei os fones de ouvido, o capuz da blusa, com um
cigarro na boca, sai pela chuva fininha que ainda caía. Todo aquele sentimento
dentro de mim, todo aquele amor, ódio, rancor, raiva, felicidade e medo quase
explodiam-me e enquanto eu andava pela chuva fina e buscava entender pelo menos
1% de tudo o que aconteceu, uma pergunta passava pela minha cabeça trezentas
vezes por segundo.
“Como ela me achou lá?”
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