uma história de dois.
Era mais uma manhã no hospital, quando o novo diretor chegou
e quis conhecer todo o prédio. Estávamos em uma cidade pequena do interior,
nada era muito desconhecido por aqui. Desde as pessoas, até a comunidade
política e a elite, eram todos conhecidos. Andávamos pelo prédio, enquanto eu,
o atual vice-diretor e antigo chefe dos médicos apresentava todos os setores de
tratamento de enfermos. Caminhávamos pelo corredor dos acidentes graves, e já
havíamos passado por vários outros, como o setor de queimados, fraturas,
pediátrico e geriátrico. Seguíamos por um corredor comprido e com alguns problemas
de iluminação, que eram ignorados pelo atual diretor.
Uma placa, bem acima da nossa cabeça, indicava o setor de
doentes psicológicos.
- Não sabia que tínhamos um manicômio anexado ao prédio do
hospital. – Disse ele.
- É um prédio antigo, que ficou anexado por estarmos em uma
cidade pequena, talvez esse setor não seja um problema para o senhor.
Normalmente é onde temos menos problemas.
- Isso é bom, mas precisamos nos atentar a todos os cuidados
com os pacientes.
Era a mesma ladainha de sempre, preocupação com pacientes
que nunca mais seria assunto. Continuamos andando. Viramos a primeira a direita
e a segunda à esquerda. O corredor era mais escuro, um pouco sujo, mas como se
não tivessem tirado o pó a quase uma semana. Como eu disse, é um setor que não do
problema, poucos vem aqui.
Caminhando pelas alas, encontramos vários pacientes como os
de praxe de manicômios. Um se dizia Napoleão Bonaparte, enquanto outro tinha
plena certeza de que era seu cavalo Branco. Alguns num canto cochichavam
enquanto olhavam para um desenho de uma porta na parede. De certo planejavam
como iriam fugir dali. Ou talvez apostassem em quem conseguiria abrir. Uns
dançavam, outros cantavam e pulavam em frente a TV. Nenhuma briga, nenhum
incômodo, simples pessoas felizes se divertindo enquanto seguiam suas vidas.
Um dos pacientes, o único, na verdade, sentava-se sozinho
num canto, quieto, cabisbaixo e aparentemente sem nenhum amigo ali. Um ou outro
se aproximava por alguns minutos e logo saiam. Este mesmo, chamou a atenção do
diretor, era ele, um jovem, cerca dos trinta anos, barba por fazer, cabelo
comprido e com um olhar profundo e penetrante. De pronto, o diretor quis saber
sobre o jovem.
- Quem é aquele ali? Aquele sentado sozinho no canto.
- Ah, aquele é um dos nossos pacientes mais adoráveis,
provavelmente ele acabou de acordar e está reconhecendo o lugar.
- Como assim, “reconhecendo o lugar”?
- Ele sofre de uma doença que faz com que ele perca a
memória sempre que dorme.
- Mas então, além dos problemas psicológicos, ele também tem
essa doença aí?
- Pois, então, fizemos diversos testes nele, de aptidão da
doença, não encontramos nenhum indicativo de doença psicológica ou física nele,
além desta “amnésia” após dormir. Na verdade, de tudo o que temos observado e
tudo o que podemos dizer sobre nossas conversas com ele, eu acredito que ele
seja o mais são de todo esse hospital.
Um sinal toca, o novo diretor se assusta, vê os pacientes
saindo calmamente, todos, indo diretamente para os seus dormitórios. Chega a
ser assustador a forma como as coisas acontecem aqui, quase não há brigas ou
discussões, sempre um ambiente mais “divertido”.
Continuamos a caminhar desta vez, em direção aos quartos. O
doutor queria ver como eram as acomodações, e, entendemos que queria saber mais
do paciente misterioso.
Passamos por diversos quartos até chegarmos ao quarto 27,
onde estava o tal paciente. Sentado em uma mesa, lendo algo em um papel que ali
estava. Ao se aproximar, o diretor observou todo o quarto do jovem. Uma cama,
uma mesinha com uma cadeira, ambas de plástico. Alguns papéis em cima da mesa,
alguns bilhetes colados nas paredes, que provavelmente fossem para que ele se
lembrasse de algumas coisas quando acordasse.
- O que ele está lendo? – Já o espantara o jovem ter várias
coisas em seu quarto.
- Não sabemos. Quando ele veio morar conosco, estava em
plena consciência, era o herdeiro da família Jones, a mais rica da cidade, seus
pais faleceram de pneumonia aguda, e ele vendeu sua casa, doou todo o dinheiro
para o hospital, e é como temos nos mantido até hoje...
- Ah! Ele é o herdeiro dos Jones. – Interrompeu o diretor.
- Sim, ele é o herdeiro. Mas como eu dizia, assim que ele
chegou aqui, foi interessante. Era um dia bonito, ensolarado. Ele veio, trazido
por sua avó, eu acho. Ela trazia nas mãos o documento, comprovando que toda a
herança havia sido vendida e os valores doados ao hospital. Ele chegou um pouco
cabisbaixo, sua avó disse que ele não estava bem, e que ela estava com uma
doença terminal e que iria passar seus últimos momentos com uma prima que
morava em um outro país. Pediu para que cuidássemos dele até que o dinheiro
acabasse, mas ele ainda vai morrer e sobrará dinheiro.
- De certo, a família era bastante rica. – Interrompeu
novamente.
- Pois então, ele chegou e, bem cabisbaixo, o encaminhamos
ao quarto 27, que era o melhor quarto que havia aqui. Ele agradeceu, trocou
suas roupas, sentou-se na mesa. Pediu papel e caneta para escrever. Ficamos
atentos para uma tentativa de suicídio, mas ele simplesmente escreveu esta
carta, guardou-a num envelope e deitou-se na cama com um olhar vazio. Depois de
algumas horas ele acordou assustado. Como se não soubesse onde estava. Olhou o
quarto todo, percorreu tudo com os olhos, chegou a derramar uma lagrima de
medo, até ver esse papel. Pegou-o, leu algumas vezes, chorou um pouco,
guardou-o de volta no envelope. E pediu post-its. E começou a colá-los pelo
quarto. Eu já li alguns post-its, mas ninguém nunca leu a carta. É algo pessoal
dele, talvez um aviso, um desejo. Nós respeitamos isso.
Após observar todo aquele pequeno ritual, o diretor achou,
por bem, voltar a sua sala. Porém, com um interesse enorme no que havia escrito
naquela carta.
Alguns dias se passaram e o interesse do diretor aumentava
ao ver o jovem. Tentou alguma aproximação algumas vezes, mas nada conseguiu.
Certa vez, estava sentado em sua mesa, quando o vice-diretor entrou em sua
sala, para pedir um ajuda num caso no setor de queimados, o diretor ignorou de
pronto e pediu ele, uma ajuda com o rapaz, estava muito curioso e precisava
conversar com ele, queria muito saber o que havia naquela carta. E sabendo que
o vice-diretor tinha uma certa proximidade, era aquela a oportunidade de
conseguir.
Seguiram os dois, em direção ao quarto 27.
Chegando, o diretor parecia estar eufórico, mas controlando
como podia. O jovem estava sentado em sua cama, confortavelmente, olhando para
o lado de fora, onde uma lua começava a aparecer graças à noite que se
aproximava. Entraram, os dois, como se fossem de casa, e assustaram o pobre
jovem.
- Fique calmo, sou eu – disse o vice-diretor – esse aqui é o
novo diretor do hospital, ele gostaria de conversar com você, podemos?
- Sim – respondeu o jovem.
- Olá, como você já sabe, eu sou o novo diretor do hospital
e tenho bastante interesse na sua doença, será que poderia me mostrar algumas
coisas?
- Sim – respondeu o jovem, olhando para o colchão.
- Eu gostaria de saber, inicialmente, por que da sua
introspecção? Por que não se relacionar com nenhum outro internado aqui no
hospital.
O jovem olhou fixamente para o diretor, seu olhar era vazio,
olhou lá no fundo dos olhos do diretor e disse calmamente:
- Todos têm algum problema psicológico aqui, eu não. Eu
tenho algum problema com a minha memória recente. Na verdade, estou aqui por
que não teria como sobreviver lá fora. Assim que eu dormir, não me lembrarei de
nada do que estou falando, ou da visita de vocês, se quer do seu rosto
lembrarei. Por que manter amizades se não vou me lembrar deles no momento
seguinte?
- De fato, você tem razão, mas reconheceu o vice-diretor,
não foi?
Um respiro profundo do jovem.
- Não. Mas sei que existe um diretor e um vice-diretor
dentro de um estabelecimento como este. Portanto vocês podem estar mentindo,
amanhã eu não vou saber de nada mesmo.
- Certo, e... o que você lê, que mexe tanto com o seu
emocional, todo dia, naquela carta que está em cima da mesa.
- Diretor, por favor – interrompi rapidamente.
- Não, eu quero saber, preciso saber, na verdade – insistiu
ele.
- Vá, olhe - disse o
jovem apontando para a mesa com a carta.
Mais que depressa, o diretor pegou a carta na mão e começou
a ler. Num instante, sua expressão mudou bruscamente de interessado para
confuso, logo em seguida para uma feição de estranhamento. O diretor se calou,
pôs a carta de volta a mesa, olhou para o jovem, agradeceu e saiu. Fiquei
alguns minutos sem entender, olhei para o jovem, que olhava para o céu
estrelado. Perguntei apontando para a mesa: “Posso?” , ele acenou com a cabeça
que sim, fui até a mesa, peguei a carta e comecei a ler.
“Terça-Feira, 10 de Agosto.
Bom dia, meu caro. Neste exato momento você está se
perguntando onde está e como foi parar aí. Esta singela carta é para lhe dizer
que, eu sou você, ou você é eu, em tempos diferentes. Estou escrevendo esta
carta em minha sã consciência. Venho dizer que você não saiu da sua cidade,
está no hospital e será cuidado da melhor maneira possível. Você não deveria
ter tomado todos aqueles remédios, eu já havia lhe alertado, mas você nunca me
escuta, não é mesmo?. Mas vamos continuar, você perderá a memória em breve e sempre
que perder sua memória, lerá esta carta e saberá quem você é. Você deve se
lembrar de nunca deixar aquele seu lado exposto, NUNCA. Nós já nos metemos em
problemas demais devido aos sentimentos. Esqueça-os, sua razão é sua melhor
amiga, e lembre-se sempre disso. Aquela garota, está lá fora, você deve se
lembrar dela, pois é, ela deve imaginar que você foi embora com a vovó depois
que o papai e a mamãe morreram, você deve se lembrar disso também, se não se
lembra, acalme-se e não chore, isso já faz muito tempo. Sobre aquela garota, vocês
não vão mais se ver, porque você não vai conseguir guardar o rosto dela por
muito tempo. Aliás, eu preciso te contar isso, antes que você descubra por
outra pessoa. Ela não é quem você pensa, ela nunca te disse, mas ela tem um
outro amor, um amor de verdade, que é provavelmente melhor que a gente. Ela
nunca nos disse, eu sei, ela dizia nos amar, e ela provocou todos esses
sentimentos em nós, e foi tudo em vão.
Acalme-se, respire. Engula o choro e vamos continuar.
Eu sou sua parte racional, eu sei por tudo o que você
passou, eu sei tudo o que você sentiu, e eu também sei por tudo o que você irá
passar. NADA, eu repito, NADA te fará sofrer mais do que esse sentimento
guardado dentro de você. ESCONDA-O DE VOCÊ MESMO.
Por muitas vezes, sua parte sentimental irá tentar falar com
você, não a ouça, é tudo o que eu lhe peço. Mantenha a cabeça firme, ame a você
mesmo, eu e você somos tudo o que nós temos. Não vamos nos entregar a alguém
que possa nos destruir. Eu estarei sempre com você, sempre.
Sempre que você tiver medo, olhe pros post-its do seu
quarto, eu vou estar falando com você. Vamos seguir tudo isso juntos. Eu vou
estar sempre aqui.
Ao fim da carta, guarde-a novamente no envelope e deixe em
cima da mesa.
Os post-its te guiarão para entender mais sobre sua vida
agora, não tenha medo, viveremos bem aqui, assim. Ninguém irá nos machucar
mais.
Eu amo você. Até amanhã.
Thiago Jones.”
Eu sai da sala um pouco atordoado.
Talvez ele tenha tido
o motivo para fazer o que fez, talvez ele não aguente mais isso. Ele se mantém
sozinho, vazio e frio. Todos os dias desde que eu li aquela carta, tento
trata-lo com um pouco mais de amor, mas ele é arredio, não consigo mais sua
confiança. Talvez ele precise mesmo ficar sozinho com seus dois lados,
conversando e tentando se entender. Eu vou tentar ajudar ele. De alguma forma.
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